quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Romeu e Julieta


Cena  II
Jardim de Capuleto

(Entra Romeu)
Romeu-Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida.(Julieta aparece à janela).Mas....devagarinho!Qual é a luz que brilha através daquela janela?É o oriente,e Julieta é o sol.Ergue-te,ó sol resplandecente,e mata a lua invejosa,que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu,sua sacerdotista,és muito mais bela do que ela própria.Não queiras mais ser sua sacerdotisa,já que tão invejosa é!As roupagens de vestal são doentias e lívidas,e somente os loucos as usam.Deita-as fora!Esta é a minha dama!Oh,eis o meu amor!Se ela o pudesse saber!Está a falar!...Não,não diz nada,mas isso que importa?O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe...Sou ousado de mais,não é para mim que ela fala.Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento,quando têm alguma coisa a fazer,pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem.Oh!Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto!O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada.Se os seus olhos estivessem no céu,lançariam,através das regiões etéreas,raios de tal esplendor que as aves cantariam,esquecendo que era noite.Vede vomo ela encosta a face à sua mão.Oh!quem me dera ser a luva dessa mão,para poder tocar a sua face.
Julieta-Ai de mim!
Romeu-Está a falar...Oh!continua,anjo resplandecente!Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do céu perante o olhar extasiado dos mortais,que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.
Julieta-Oh!Romeu,Romeu!Mas porque é tu Romeu?Renega o teu pai,o teu nome,ou,se o não quiseres fazer,jura apenas que me amas e deixarei eu ser uma Capuleto.
Romeu (aparte)-Deverei eu continuar a ouví-la,ou responder-lhe?
Julieta-É apenas o teu nome que é meu inimigo,tu és tu mesmo,e não um Montecchio.E que é um Montecchio?Não é mão,nem pé,nem braço,nem rosto,nem qualquer outra parte que pertença a um homem.Oh!Sê qualquer outro nome!O que é que existe num nome?Aquilo a que nós chamamos de rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome!Assim,Romeu,ainda que não chamasse Romeu,conservaria a mesma perfeição que agora possui.Romeu,renuncia ao teu nome,e em vez dele,que não faz parte de ti mesmo,apodera-te de mim!
Romeu-Aceito.Chama-me apenas teu amor,e far-me-ei de novo batizar.De ora avante nunca mais serei Romeu.
Julieta-Quem és tu que,assim protegido pela noite,vens surpreender o meu segredo?
Romeu-Eu não sei que nome hei-de pronunciar para te dizer quem sou.O meu nome,querida santa,eu próprio o odeio,por ser para ti um inimigo.Se eu o tivesse escrito,rasgá-lo-ia.
Julieta-Os meus ouvidos não escutaram uma centena de palavras pronunciadas por esta voz,e contudo eu reconheço-a.Não és tu Romeu,e Montecchio?
Romeu-Nem uma coisa nem outra,gentil donzela,se ambas te desagradam.
Julieta-Dize-me:como vieste tu até aqui e para quê?Os muros do jardim são altos e difíceis de escalar,e este lugar será para ti a morte se algum dos meus parentes te descobre aqui.
Romeu-Transpus estes muros com as leves asas do amor,porque não são as barreiras de pedra que o podem embaraçar,e o que o amor tem possibilidades de fazer ousa logo tentá-lo!Por isso mesmo,não são os teus parentes que me servirão de obstáculo.
Julieta-Se eles te vêem,matar-te-ão.
Romeu-Ai!Há mais perigo nos teus olhos do que em vinte das suas espadas.Basta que me olhes com ternura e ficarei couraçado contra a sua inimizade.
Julieta-Por nada deste mundo eu queria que te vissem aqui.
Romeu-O manto da noite oculta-me aos olhos deles.Mas,se tu me não amas,que importa que me encontrem?Seria melhor que o ódio deles pusesse fim à minha vida do que a morte tardasse faltando-me o teu amor.
Julieta-Quem te ensinou este caminho?
Romeu-O amor encorajou as minhas pesquisas.Deu-me o seu conselho e eu dei-lhe os meus olhos.Não sou piloto,e contudo,se estivesse afastada nessa extensiva praia que o mais mais longínquo banha,aventurar-me-ia a ir em busca dum tal tesouro.
Julieta-Tu sabes que a máscara da noite vela o meu rosto,pois,se assim não fosse,verias um rubor virginal tingir-me as faces,pelo que me ouviste pronunciar há pouco.Bem quisera eu guardar as conveniências e negar o que disse,mas adeus conveniências!Tu amas-me?Eu sei que vais dizer que sim,e acreditarei na tua palavra,mas,se jurasses,podias trair o juramento,dizem que Júpiter se ri dos perjúrios dos amantes.Oh!querido Romeu!Se gostas de mim,dizei-mo lealmente,mas,se pensas que fui muito fácil de conquistar,franzirei as sobrancelhas,serei cruel e dir-te-ei:-"Não"-para te dar ensejo a que me faças a corte.Doutro modo nem por todo o mundo o farei.A verdade,belo Montecchio,é que estou apaixonada,e por isso talvez julgues leviana a minha conduta,mas acredita,meu senhor,que me hei-de mostrar mais fiel do que aquelas que sabem melhor afectar reserva.Confesso que terias sido mais reservada se tu não tivesses surpreendido há pouco a confissão apaixonada do meu amor.Perdoa-me,pois,e não atribuas a um amor leviano esta fraqueza que a noite escura te permitiu descobrir.
Romeu-Senhora,eu juro pela lua sagrada,que coroa de prata os cimos de todas estas árvores de fruto...
Julieta-Oh!não jures pela lua,essa lua inconstante que todos os meses muda de figura,ao rodar na sua órbita.Tenho medo de que o teu amor se torne tão inconstante como ela...
Romeu-Porque hei-de então jurar?
Julieta-Não jures por coisa alguma.Ou,se quiseres,jura pela tua graciosa pessoa,que é o deus da minha idolatria,e eu acreditar-te-ei.
Romeu-Se o amor profundo do meu peito...
Julieta-Bem,não jures.Embora a minha alegria de te ver seja grande,não sinto alegria alguma nesta noite com o teu juramento.É demasiado brusco,demasiado imprevisto e repentino,demasiado semelhante ao relâmpago,que desaparece antes que se possa dizer:-"Ele brilha"-.Boa noite,querido!Este amor em botão,amadurecido pela brisa do Estio,talvez se transforme em flor esplêndida no nosso próximo encontro.Boa noite!Oxalá que a paz e calma deliciosas que enchem o meu peito possam também encher o teu coração.
Romeu-Oh!Vais-me deixar assim,sem me concederes mais nada?
Julieta-Que mais queres tu que te conceda esta noite?
Romeu-Que troques pelo meu o juramento fiel do teu amor.
Julieta-Dei-te o meu amor antes que tu mo pedisses,e contudo queria tê-lo ainda.
Romeu-Querias tirar-mo?E para quê,meu amor?
Julieta-Só para ser generosa e dar-to outra vez.E contudo eu só desejo o que já tenho:a minha generosidade é tão ilimitada como o mar,e tão profundo como este é também o meu amor:quanto mais te dou,tanto mais me fica,porque uma e outro são infinitos.(A ama chama de dentro ).Ouço ruído lá dentro.Adeus,meu querido amor-Já lá vou,ama.-Sê fiel,querido Montecchio.Espera só um momento,que eu volto já.(Sai da janela)
Romeu-Oh!noite abençoada,bendita noite!Tenho medo de que,por ser de noite,tudo isto seja um sonho,demasiada e deliciosamente adulador para ser real.

(Julieta volta de novo)

Julieta-Três palavras só querido Romeu,e boa noite.Se a intenção do teu amor é honesta,e tem por fim o casamento,faz-me saber,pela pessoa que eu te hei-de mandar amanhã,o lugar e a hora em que se há-de efectuar a cerimónia,e eu deporei a teus pés todo o meu destino e seguir-te-e ,meu senhor,através de todo o mundo.
Ama (de dentro)-Menina!
Julieta-Vou já-Mas se as tuas intenções não são puras,suplico-te...
Ama (de dentro)-Ó menina!
Julieta-É só um instante,vou já...-suplico-te que acabes com os teus galanteios e me deixes entregue à minha dor.Amanhã mandarei.
Romeu-Assim se salve a minha alma...
Julieta-Mil vezes boa noite.(Sai da janela)
Romeu-Noite mil vezes má,desde que lhe falte a tua luz.O amor corre para o amor como os rapazes ao deixarem os livros,mas afasta-se dele como o olhar triste como o dos rapazes que vão para escola.(Retira-se)
Julieta (aparecendo de novo à janela)-Pst!Romeu,pst!Oh!quem me dera ter a voz do falcoeiro para fazer voltar atrás este gentil açor!Mas a escravidão é rouca e não pode falar alto.De contrário faria estremecer a caverna onde eco dorme e a sua voz aérea tornar-se-ia mais rouca do que a minha,tantas vezes lhe faria repetir o nome do meu Romeu.
Romeu-É a minha alma que chama pelo meu nome.Que som argentino tem de noite a voz dos amantes!É a música mais suave que os ouvidos podem escutar!
Julieta-Romeu!
Romeu-Meu amor!
Julieta-A que horas te posso mandar procurar amanhã?
Romeu-Às nove horas.
Julieta-Não faltarei.Daqui até lá vão vinte anos.Já me esqueci para que te chamei.
Romeu-Deixa-me ficar aqui até que tu te lembres outra vez.
Julieta-E eu esquecê-lo-ei,para que tu fiques sempre aí,não me lembrando senão de quanto eu adoro a tua companhia.
Romeu-E eu ficarei aqui,para que tu continues a esquecer-te,e esquecerei qualquer outra habitação a não ser esta.
Julieta-Já é quase manhã.Quisera que te tivesses ido,mas que não te afastasses mais do que a avezita-pobre prisioneira amarrada aos grilhões-que uma criança travessa deixa,por uns momentos,fugir da sua mão,e que,com o fio de seda,depressa atrai a si de novo,porque lhe quer demasiadamente para não ter ciúmes da sua liberdade.
Romeu-Eu,eu quisera a tua avezita.
Julieta-Também eu o queria,meu amor,mas eu matar-te-ei à força de carinhos.Boa noite!Boa noite!A despedida é uma tão doce tristeza que continuarei a dizer-"Boa noite"-até que seja manhã.(Sai)
Romeu-Que o sono desça aos teus olhos e a paz ao teu coração.Bem quisera eu ser sono e paz para tão deliciosamente repousar.Vou daqui para cela do meu pai espiritual para lhe implorar o seu auxílio e confiar-lhe a minha ventura.(Sai)


William Shakespeare
(livro-Romeu e julieta)

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